sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Mamãe, o avião!




Meu filho é um bravo guerreiro e foi um pequenino símbolo de herói da resistência. Ele lutava bravamente todos os dias contra o sono. Não se entregava, não se rendia. Não dormia e não me deixava dormir...


A nossa casa, quando ele nasceu, na verdade era um apartamento que ficava bem pertinho do céu e quando eu voltava à noite, passava no berçário para buscá-lo e ele vinha, novinho em folha, cheio de energia para gastar. Ficávamos brincando até chegar a hora de dormir. Essa era a hora que alguém disse que deveria ser a hora de dormir, talvez aquela música dos cobertores Parahyba, mas, certamente, não era a hora dele. Muitas vezes nós ficávamos deitados atravessados na minha cama, de onde era possível ver o céu através da tímida janela. Que pena, uma vista tão linda e uma janela tão pequena. Mas, mesmo pequena, permitia a vista do céu, muitas vezes com estrelas e o melhor, enquadrada neste apertado campo de visão, estava a rota dos aviões de Congonhas.

Pensava eu que, ao invés de contar carneirinhos, podíamos contar aviões e quem sabe deixar o sono vencer a inglória batalha. No entanto, justamente nessa época, o aeroporto devia operar em sua capacidade máxima, algo próximo de um avião por minuto e sempre que a luz apontava no céu ele falava: “mamãe, o avião!”

E assim o tempo passava, os aviões eram contados, facilmente chegávamos aos 60 e muitas vezes alcançamos 120. Nem dava para imaginar quanta gente desembarcava, pegava taxi, ia embora para algum lugar. Era um universo inalcançável. “Mamãe, o avião!”

Os anos se passaram, os aviões também continuaram passando por aquela janela, mas nós nem lá morávamos mais.



Era julho, mês de férias, ele foi visitar os avós e eu fiquei em São Paulo quando, da minha janela vi um clarão que só consegui entender horas depois, quando ele mesmo me ligou preocupado, querendo saber onde eu estava. Então soube que havia caído um avião no aeroporto e o clarão que eu tinha visto estava explicado. Todos ficamos muito impressionados e ele, que já se dava conta da vida, muito preocupado comigo, que estava sempre viajando.

As aulas recomeçaram e num dia da primeira semana ele voltou para casa contando que uma colega chorou ao contar para a classe que o pai dela estava no avião.

Este fato se transformou em um trauma, em uma quase desistência de sonhos e em uma grande preocupação para ele. Eu, sempre indo para algum lugar, ao pisar na África certa vez e procurar noticias de casa, soube que, enquanto atravessava o Atlântico, ele passou a noite chorando de preocupação, pois eu não atendia à sua chamada no celular.



Mês passado fizemos um trato de acabar com esse medo, de vencer o trauma com a mesma força que ele era capaz de vencer o sono quando pequeno. Viajamos juntos, embarcamos e voamos de mãos dadas pelo menos até o meio do caminho, quando ele percebeu que havia conseguido. Então assim ele pôde sonhar novamente, fazer planos. O mundo ficou bem menor, pois o avião poderá levá-lo a qualquer lugar assim como leva tanta gente para lá e para cá.

Olhar o céu é uma forma de realinhar os pensamentos, fortalecer as convicções, pensar no futuro. Deitar-se de costas no chão, com pernas e braços abertos, tal como o ‘Homem Vetruviano’, e olhar o céu é a expressão máxima da plenitude. Somente as crianças ou alguém com muito equilíbrio e paz consegue. Outro dia, eu e meu filho fomos jogar na quadra, que fica na parte mais alta do condomínio, de onde podemos ver os telhados das casas e estamos mais perto do céu. A nossa casa é outra, até mesmo a cidade é outra, mas, por coincidência fica na mesma linha da rota dos aviões que passavam por aquela janela, fazendo às vezes de carneirinhos do sono.

Depois de jogar, correr, brincar e rir, deitamo-nos no chão para descansar. Ele me chamou e quando percebeu que havia me magnetizado com os seus olhos, fez um gesto com a mão para capturar o meu olhar preso. Com o dedo indicador, apontou para o céu me guiando. Ao mesmo tempo sorrimos e ao mesmo tempo falamos: “o avião!”

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Melissinha de papel





Certamente era inverno por aquelas paragens, quão seco era o ar, quão azul era o céu. O sol no descampado fazia arder a pele que, na sombra, se arrepiava com as frias rajadas de vento.

Íamos nós, eu, criança na mais absoluta infância, e meu avô, caminhando pela estrada de terra, na descida para a ponte. Minha frágil e macia mãozinha era firmemente agarrada pela mão dele, de pele grossa, cheia de calos e cortes. Os ossos já sobressaltavam pela parte externa, como sempre acontece com as mãos dos velhos, para não deixar ninguém se esquecer que, quanto mais se avança a idade, mais perto se chega da morte e depois dela, quem sobrarão serão eles, os ossos.
Juntos caminhamos em passos lentos, eu por ser criança pequena, de pernas e passos curtos e que, por mais esforço fizesse, nunca conseguiria atingir uma performance aceitável. Ele, por ser manco, fruto de um lendário acidente envolvendo bois e seus carros de belas rodas cantantes.
Na outra mão ele segurava uma enxó, que, ao chegar na margem do riacho, usaria com toda a destreza com o único objetivo de me mostrar que estava disposto a fazer o que fosse preciso para diminuir a minha tristeza e fazer parar de rolar lágrimas dos meus olhos, que, misturadas com a poeira da terra grudada na pele, desenhavam riscos que se confundiam com pinturas de circo ou mesmo de índio.
A origem da tristeza era um sapato, ou para ser mais justa, um sapatinho. Uma ‘Melissinha’ de plástico transparente com pontinhos brilhantes em seu interior, o que hoje em dia é chamado de glitter, mas que, naquela época eram simplesmente chamado de brilho.

Meu pai, que aprendeu com os vizinhos libaneses, a quem costumávamos chamar de turcos, a arte de comprar e vender, vez por outra viajava para buscar mercadoria em cidades de mais recurso. A preferência era a 25 de março, mas por ser a mais longe era na verdade a menos freqüentada. Assim sendo, o jeito era ir na Pedro II em Belo Horizonte ou então, mais perto e mais fácil, para coisas mais simples e mais fáceis, estava lá Uberlândia. E foi lá que ele comprou para a única filha, a única menina entre os irmãos, um par de ‘Melissinha’ do último modelo, justamente aquela transparente com brilho.
Com a minha sandália, também ganhei umas bolhas no calcanhar por causa da rebarba mal feita do plástico, mas que nada significavam pois eram sufocadas pelos curativos de esparadrapo e band-aid.

Resolvi acompanhar meus irmãos e seus amigos em uma aventura. O desafio era ir de uma fazenda a outra à pé, não pela estrada, mas, caminhando dentro do riacho. Eu, a única menina da turma e também a única que tinha uma sandália de plástico que podia molhar, fui calçada. Enquanto todos machucavam os pés nas pedras dentro do leito do riacho, eu caminhava confortavelmente, sem sentir dor. Começamos a caminhada pela ponte, onde o riacho parecia um raquítico filete de água, ainda mais nessa época de inverno e seca. Mas já na primeira curva, o curso d´água fazia um nó tão violento que ninguém, vendo aquele risco fraquinho passando sob a ponte, imaginaria que pudesse ter tanta força. E foi lá que, de repente uma das sandálias foi arrancada do meu pé de forma rápida e quase violenta. Dei um grito, todos pararam e olharam para trás, alguns até voltaram para me ajudar a procurar, outros responderam que iam ficar lá na frente para poder cercar o pezinho que ia rolando rio abaixo. No entanto, ninguém viu nada, o pé de Melissinha sumiu. Todos continuaram o caminho e eu voltei para casa sozinha, sem acreditar no que havia acontecido.
Quando lá na casa cheguei e contei a história, meu avô se prontificou a me ajudar. Chegando no local, depois da caminhada pela estrada, ele soltou minha mão e com uma impressionante habilidade, fincou a enxó no barranco do riacho que era pura argila e a cor fendi tingiu toda a água cristalina ao redor. Naquele tempo e naquele lugar certamente a cor da argila não tinha esse nome, no entanto foi assim que a água ficou. Ele, com força e vontade, revirou toda a margem, mas não encontrou nada.
Sem trocarmos nenhuma palavra, subimos a estrada de volta para casa, caminhando agora mais lentamente ainda, eu, pensando na minha sandália e ele pensando em qualquer coisa que uma criança é incapaz de imaginar nos adultos, muito menos nos velhos. Tão envolvidos estávamos com nossos próprios pensamentos que nem escutamos os estalos do bambuzal por conta da ventania.

Dia desses estive lá. Sozinha, desci a estrada, seca e empoeirada. Passei a ponte e cheguei na curva do rio pela margem. O sol brilhava forte, mas, quando me agachei e pus as mãos na água, senti um gelo dolorido que me levou de volta àquele dia em que perdi a sandália. Deixei minhas mãos na água, desejando que fossem embora na corredeira que levou minha sandália, também as minhas tristezas, meus medos, minhas angústias. Lá me perdi por algum tempo, não sei quanto e só voltei quando ouvi a voz do meu filho me chamando. Levantei-me e ele estava ao meu lado, me observando. Também sem falar nada., segurei sua mãozinha e caminhamos nós dois juntos, pela mesma estrada, envolvidos em nossos próprios pensamentos, cada um no seu e ele, certamente, sem poder imaginar os meus. Passamos por baixo do bambuzal e nem notamos os estalos provocados pelo vento.

Bicicleta na cidade



Caio, o que eu vou falar, a principio pode não estar relacionado com o assunto, mas, de uma certa forma está sim, uma vez que sustentabilidade é um conceito amplo, que diz respeito a comportamento e escolhas. Por isso, vou contar sobre um fato que me ocorreu e tudo o que esse fato me fez pensar. Hoje eu quase atropelei um jovem ciclista na Av. Juscelino Kubitschek.


Eu, a malvada, dentro do conforto do meu S.U.V. coreano, pisei com força nos freios quando ele, a vítima, no auge dos seus 13 anos, montado em sua magrela sem marca famosa, resolveu atravessar a pista, no meio do transito frenético.

Felizmente, nada aconteceu, além do susto, provavelmente mais meu do que dele. Acontece que isso me fez pensar. Não estou sendo uma pessoa sustentável, comprometida com a cidadania, preocupada com as questões urbanas e sociais? Estou sendo egoísta ao optar voltar para casa ouvindo boa música no rádio?

Mas, alguém me explica, como é que faz para deixar o carro em casa e ir trabalhar de bicicleta?

Vamos lá, eu moro em Alphaville e trabalho em São Judas. São 35 km de autopistas entupidas e enlouquecidas.

Vou encontrar uma forma de levar meu filho Caio para o colégio, deixar ou carro em casa e sair com a minha bike.

Vou me vestir a caráter, não para aparecer, mas para minha segurança, sapatilha, bermuda, camiseta, capacete, luvas, etc, etc… Ah, claro, nas costas tem que ir uma mochila com uma muda de roupas para que eu possa me transformar em empresária, depois de dar minhas pedaladas.

No meu escritório não tem chuveiro, então, vou chegar lá com o sovaco fedendo e a busanfa assada, tirar aquela indumentária e vestir a roupa amassada que veio dentro da mochila.

À noite, depois de um dia repleto de atividades, arranco fora minha farda de empresária e me enfio naquela roupa, suada, toda grudada, meia com chulé e, com minha mochila nas costas, vou pedalando, à noite, no meio do transito ensandecido.

Tempos depois, chego em casa, com os pés cheios de bolha, mas chego.

Isso, num dia de tempo bom, como esses que nunca temos em estação nenhuma do ano em São Paulo.

E quando chove? Alguém já pedalou de capa de chuva? E o freio dessa coisa, vai mesmo funcionar?

Acho realmente uma iniciativa louvável, mas, infelizmente, não é para mim. Confesso que tenho medo de morrer massacrada por uma carreta no muro da raia olímpica da USP.

Talvez funcionasse para mim, se eu morasse na Sabiá e trabalhasse na Maracatins, de preferência com um belo vestiário para me recompor, depois de atravessar, com muito cuidado, a Av. Ibirapuera.

O trânsito de São Paulo é alucinado, não é para pessoas frágeis pedalantes, por isso, vou ficar com o meu carro mesmo, desejando ser Moisés, capaz de abrir o mar vermelho das lanternas dos carros que estão à minha frente, me separando do meu atual ponto de localização no eterno congestionamento, da minha casa, cada dia mais distante.

Além desse desejo bíblico, gostaria muito que tivesse uma estação de metrô perto do Shopping Tamboré, onde eu pudesse deixar meu politicamente incorreto meio de transporte estacionado, sem poluir o planeta, sem contribuir para a emissão de gases que provocam o efeito estufa, e embarcar num trem, novinho, limpinho, cheiroso, música ambiente de boa qualidade, pessoas bonitas, bem tratadas, pele hidratada, cabelos esvoaçantes, discutindo questões mais nobres, do tipo, será que Deus será encontrado pelos cientistas que aceleraram as tais partículas?

Abcs

Comentário por caio.camargo

1 01America/Sao_Paulo abril 01America/Sao_Paulo 2010

Agradeço o seu comentário, Anna. Entendo perfeitamente o dilema diário que você enfrenta. Lamento informar que não haverá acelerador de partículas que ajudará a contemplar os seus sonhos. Mesmo assim apareça sempre por aqui. Você, acima de tudo, escreve muito bem.

Abraços,

Caio Camargo

Explicando

Resolvi ter um blog. Todo mundo tem, então eu também quero ter.
Na verdade já tive, mas um dia eu o abandonei, da mesma forma que abandonei meu perfil no Orkut.
Mas agora, me deu vontade de novo, então, cá estou de volta.
A proposta é escrever e postar.
Eu escrevo porque gosto. Não sou escritora, mas até que gostaria, sou arquiteta, mas não escrevo sobre arquitetura, às vezes sim, mas não sempre.A arquitetura está na minha vida, no meu caminho, no meu percurso, mas outras coisas acontecem também.
E é sobre isso que eu falo, sobre o que me aconteceu ontem ou em outros tempos e lugares.
Um dia eu resolvi comentar um post do jornalista Caio Camargo do Jornal Eldorado e ele me respondeu, inclusive me elogiando. Fiquei muito contente e orgulhosa também e me entusiasmei e resolvi fazer este blog. A primeira postagem é sobre este assunto e os demais, vamos ver como será.
Por isso, sempre que me acontecer algo ou que eu me lembrar de alguma coisa interessante, vou postar e dividir com quem quiser.