quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Melissinha de papel





Certamente era inverno por aquelas paragens, quão seco era o ar, quão azul era o céu. O sol no descampado fazia arder a pele que, na sombra, se arrepiava com as frias rajadas de vento.

Íamos nós, eu, criança na mais absoluta infância, e meu avô, caminhando pela estrada de terra, na descida para a ponte. Minha frágil e macia mãozinha era firmemente agarrada pela mão dele, de pele grossa, cheia de calos e cortes. Os ossos já sobressaltavam pela parte externa, como sempre acontece com as mãos dos velhos, para não deixar ninguém se esquecer que, quanto mais se avança a idade, mais perto se chega da morte e depois dela, quem sobrarão serão eles, os ossos.
Juntos caminhamos em passos lentos, eu por ser criança pequena, de pernas e passos curtos e que, por mais esforço fizesse, nunca conseguiria atingir uma performance aceitável. Ele, por ser manco, fruto de um lendário acidente envolvendo bois e seus carros de belas rodas cantantes.
Na outra mão ele segurava uma enxó, que, ao chegar na margem do riacho, usaria com toda a destreza com o único objetivo de me mostrar que estava disposto a fazer o que fosse preciso para diminuir a minha tristeza e fazer parar de rolar lágrimas dos meus olhos, que, misturadas com a poeira da terra grudada na pele, desenhavam riscos que se confundiam com pinturas de circo ou mesmo de índio.
A origem da tristeza era um sapato, ou para ser mais justa, um sapatinho. Uma ‘Melissinha’ de plástico transparente com pontinhos brilhantes em seu interior, o que hoje em dia é chamado de glitter, mas que, naquela época eram simplesmente chamado de brilho.

Meu pai, que aprendeu com os vizinhos libaneses, a quem costumávamos chamar de turcos, a arte de comprar e vender, vez por outra viajava para buscar mercadoria em cidades de mais recurso. A preferência era a 25 de março, mas por ser a mais longe era na verdade a menos freqüentada. Assim sendo, o jeito era ir na Pedro II em Belo Horizonte ou então, mais perto e mais fácil, para coisas mais simples e mais fáceis, estava lá Uberlândia. E foi lá que ele comprou para a única filha, a única menina entre os irmãos, um par de ‘Melissinha’ do último modelo, justamente aquela transparente com brilho.
Com a minha sandália, também ganhei umas bolhas no calcanhar por causa da rebarba mal feita do plástico, mas que nada significavam pois eram sufocadas pelos curativos de esparadrapo e band-aid.

Resolvi acompanhar meus irmãos e seus amigos em uma aventura. O desafio era ir de uma fazenda a outra à pé, não pela estrada, mas, caminhando dentro do riacho. Eu, a única menina da turma e também a única que tinha uma sandália de plástico que podia molhar, fui calçada. Enquanto todos machucavam os pés nas pedras dentro do leito do riacho, eu caminhava confortavelmente, sem sentir dor. Começamos a caminhada pela ponte, onde o riacho parecia um raquítico filete de água, ainda mais nessa época de inverno e seca. Mas já na primeira curva, o curso d´água fazia um nó tão violento que ninguém, vendo aquele risco fraquinho passando sob a ponte, imaginaria que pudesse ter tanta força. E foi lá que, de repente uma das sandálias foi arrancada do meu pé de forma rápida e quase violenta. Dei um grito, todos pararam e olharam para trás, alguns até voltaram para me ajudar a procurar, outros responderam que iam ficar lá na frente para poder cercar o pezinho que ia rolando rio abaixo. No entanto, ninguém viu nada, o pé de Melissinha sumiu. Todos continuaram o caminho e eu voltei para casa sozinha, sem acreditar no que havia acontecido.
Quando lá na casa cheguei e contei a história, meu avô se prontificou a me ajudar. Chegando no local, depois da caminhada pela estrada, ele soltou minha mão e com uma impressionante habilidade, fincou a enxó no barranco do riacho que era pura argila e a cor fendi tingiu toda a água cristalina ao redor. Naquele tempo e naquele lugar certamente a cor da argila não tinha esse nome, no entanto foi assim que a água ficou. Ele, com força e vontade, revirou toda a margem, mas não encontrou nada.
Sem trocarmos nenhuma palavra, subimos a estrada de volta para casa, caminhando agora mais lentamente ainda, eu, pensando na minha sandália e ele pensando em qualquer coisa que uma criança é incapaz de imaginar nos adultos, muito menos nos velhos. Tão envolvidos estávamos com nossos próprios pensamentos que nem escutamos os estalos do bambuzal por conta da ventania.

Dia desses estive lá. Sozinha, desci a estrada, seca e empoeirada. Passei a ponte e cheguei na curva do rio pela margem. O sol brilhava forte, mas, quando me agachei e pus as mãos na água, senti um gelo dolorido que me levou de volta àquele dia em que perdi a sandália. Deixei minhas mãos na água, desejando que fossem embora na corredeira que levou minha sandália, também as minhas tristezas, meus medos, minhas angústias. Lá me perdi por algum tempo, não sei quanto e só voltei quando ouvi a voz do meu filho me chamando. Levantei-me e ele estava ao meu lado, me observando. Também sem falar nada., segurei sua mãozinha e caminhamos nós dois juntos, pela mesma estrada, envolvidos em nossos próprios pensamentos, cada um no seu e ele, certamente, sem poder imaginar os meus. Passamos por baixo do bambuzal e nem notamos os estalos provocados pelo vento.

8 comentários:

  1. Ah que bom que você agora escreve para todo mundo ler. Também tive uma Melissa, nem sei se o nome era esse, mas fiz minha mãe rodar a cidade inteira até encontrar.
    Quando poderíamos imaginar que a infância seria uma parte tão importante das nossas vidas...

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  2. Pois é. O grande mérito de escrever é conseguir fazer de um fato tão sem importância uma história bonitinha... Venha sempre, sua opinião é muito importante!
    bjs

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  3. Bem vinda ao time dos blogueiros. Assim como fiz, comecei fazendo pra mim,mas não é que acabou servindo pra outros tantos?

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  4. Valeu, obrigada pela visita.
    A paginação do blog em si é pobrezinha, nunca tive muita paciência para mergulhar nesse universo.
    Espero que o conteúdo seja de melhor qualidade... rsrs

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  5. Delícia de história, lala! Seu texto tb é bem vibrante, tem um ritmo ótimo! Gostei!

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  6. Valeu, Rebeca, obrigada pela visita e volte sempre!!

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  7. Queria ter comentado já no primeiro dia, se não no primeiro momento. . . mas o meu inferno astral com a informática parece interminável.
    Hoje me atualizei nos seus textos, que são ÓTIMOS, como sempre. Fico muito feliz que tenha retomado um blog, pois assim podemos nos deliciar com seus textos. PARABÉNS menina. Nos encontramos por ai ou por aqui, mas contantemente "siberneticamente". bjs

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  8. Lala, me emocionei muito... saudades do vozinho, dos tempos de aventuras no "corguim" com os sobrinhos. Você me fez até sentir o cheiro do bambuzal!

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